17 Março 2023
O Governo de Ortega não participa de cúpulas, nem de reuniões regionais, nenhuma força política o apoia publicamente e a esquerda latino-americana se distanciou. Compreender as razões desse resultado é uma tarefa complexa.
O comentário é de Raúl Zibechi, publicado por Público, 15-03-2023. A tradução é do Cepat.
“Parece-me perigoso que o pensamento de esquerda seja associado ao regime de Ortega porque significa abraçar um monstro e se afundar com ele”, sentencia Gregory Randall, engenheiro e professor universitário em Montevidéu. Em uma entrevista para esta reportagem, ele afirma que não denunciar o regime de Ortega-Murillo, na posição de esquerda, terá um efeito de “catástrofe moral, como em seu momento a não denúncia dos crimes do stalinismo significou um desastre para o comunismo, que nos afeta até hoje”.
Filho de Margaret Randall, destacada feminista solidária à Revolução Sandinista dos anos 1980, Gregory foi um dos dois redatores do manifesto Nicaragua, otro zarpazo y… ¿otro silencio?, que em junho de 2021 denunciou o regime de Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, com a assinatura de personalidades como José Mujica, Lucía Topolansky, William I. Robinson e Elena Poniatowska.
A ditadura está tão isolada no plano internacional quanto entre a esquerda continental, a ponto de que a maioria dos partidos e movimentos sociais a condenam ou evitam se manifestar; e uns poucos mantêm seu apoio ao regime. Nas últimas décadas, a percepção sobre o que está acontecendo na Nicarágua vem mudando lentamente, conforme vão sendo superados os laços históricos e emocionais, prevalecendo os valores próprios da esquerda contra o autoritarismo.
Na sétima cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos - CELAC, realizada no último dia 24 de janeiro, em Buenos Aires, nenhum governo dos 33 países membros apoiou explicitamente o casal Ortega-Murillo. O isolamento internacional ficou tão evidente que o presidente da Nicarágua decidiu não participar da cúpula, mesmo com a presença do recém-eleito presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, conferindo um caráter especial ao encontro. Em seu lugar, participou o chanceler Denis Moncada Colindres.
Nesta cúpula, o presidente do Chile, Gabriel Boric, pediu a libertação dos presos políticos e condenou as violações dos direitos humanos, “independentemente da marca política de quem governa”. Vários governos progressistas ofereceram cidadania aos nicaraguenses expulsos pelo casal Ortega-Murillo, entre eles, Argentina, Chile e México. Quase imediatamente depois, o Governo colombiano de Gustavo Petro fez o mesmo. Embora Lula não tenha se manifestado, seu chanceler, Mauro Viera, considerou Ortega um ditador e anunciou que o Planalto se distanciaria.
Nos 16 anos passados, desde que assumiu sua segunda presidência, Daniel Ortega tem sofrido mais solidão do que qualquer outro governo da região. Embora os grandes meios de comunicação e a direita continental tentem colocar Venezuela e Cuba na mesma categoria da Nicarágua, a situação é completamente diferente. A esquerda latino-americana já vem se posicionando frente ao regime autoritário da Nicarágua, mantém reservas sobre a Venezuela e sustenta seu apoio histórico a Cuba.
Nas esquerdas e nos movimentos sociais, abundam declarações de solidariedade a Cuba e sinais de apoio à Venezuela, dois países que sofrem um verdadeiro bloqueio e pressão política dos Estados Unidos. A Nicarágua, no entanto, recebe o apoio explícito de organizações financeiras alinhadas a Washington, como o Fundo Monetário Internacional - FMI.
As críticas ao Governo de Ortega se estenderam dos pequenos núcleos iniciais até a atual e incisiva rejeição em massa. Nessa mudança, teve papel decisivo a revolta popular de 2018, que por meio da repressão mostrou a face mais sangrenta do regime.
O permanente alinhamento com os Estados Unidos e o grande empresariado também enfraqueceu a imagem do presidente, neutralizando o discurso anti-imperialista com o qual busca mascarar uma realidade marcada pela corrupção e a repressão. A prisão de opositores e as duras condições de reclusão acabaram convencendo muitos da esquerda de que o Governo Ortega-Murillo é uma ditadura.
Em junho de 2008, um ano e meio após a chegada do casal Ortega-Murillo ao poder, personalidades como Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Ariel Dorfman, Salman Rushdie, Juan Gelman, Tom Hayden, Bianca Jagger e Mario Benedetti, entre outros, assinaram uma mensagem intitulada Dora Maria merece ser ouvida. A ex-comandante Dora María Téllez, expulsa do país e despojada de sua nacionalidade, em 9 de fevereiro de 2023, naquele momento, realizava uma greve de fome para impedir que o partido que havia fundado, o Movimento de Renovação Sandinista - MRS, perdesse arbitrariamente sua legalidade jurídica.
Aqueles que haviam se destacado pelo apoio à Revolução Sandinista, em pleno assédio dos Estados Unidos, em 2008, reivindicavam “que os espaços políticos não fossem fechados e que houvesse um diálogo nacional para resolver a crise alimentar e o alto custo de vida que a Nicarágua enfrentava, assim como em muitos países. Nenhuma dessas demandas é irracional e um governo que queira o apoio popular deve respondê-las”, segundo aquela ação.
Já naquele momento, Téllez denunciava que Ortega estava instalando uma “ditadura institucional” na Nicarágua, e o tempo lhe deu razão. O regime havia se apoderado das principais instituições, como destacou Vilma Núñez, presidenta do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos - CENIDH, e por meio delas exercia o seu poder absoluto: “A ditadura institucional está sendo exercida através do funcionamento fraudulento, inadequado, das instituições do Estado, fundamentalmente do Poder Judiciário, de um Poder Eleitoral que trabalha em função de quem deve vencer ou perder as eleições, de uma Controladoria Geral da República que se faz de dissimulada ou oferece respostas tardias”.
Uma ditadura que Núñez considera filha do pacto Ortega-Alemán, que já tinha uma década. Quando o Conselho Superior Eleitoral - CSE decidiu cancelar a legalidade da MRS, em plena greve de fome de Dora María, o ex-presidente direitista Arnoldo Alemán (1997-2002) apoiou o Governo, assim como o cardeal Obando, outrora um furioso antisandinista.
Uma das primeiras e mais contundentes vozes que, da esquerda, ergueu-se contra o regime foi a do uruguaio José Mujica, em 17 de julho de 2018, em uma intervenção no Senado. “Sinto-me mal... sinto que algo que foi um sonho se desvia, cai na autocracia, e entendo que aqueles que ontem foram revolucionários perderam o sentido (...). Na vida, há momentos em que você tem que dizer: vou embora”, expressou um indignado Mujica sobre os mais de 300 assassinatos com os quais o regime de Ortega esmagou a revolta. Sua voz tem suficiente prestígio para que ninguém pudesse a ignorar, nem o acusar de estar a serviço da direita e do imperialismo, como costumam fazer os defensores da ditadura.
Aquele manifesto de 2021 começa com uma frase devastadora: “É difícil saber se Daniel Ortega adoeceu pelo poder, está doente por manter o poder ou ambos”. E continua: é “um presidente autocrático e autoritário, aliado até pouco tempo atrás às grandes fortunas (Conselho Superior da Empresa Privada), capaz de reprimir impiedosamente seu povo, junto com o qual não soube, não quis ou não pôde construir qualidade de vida, nem uma institucionalidade democrática e transparente que lhe permitisse realizar, com liberdade, pacificamente, seu destino”.
O manifesto denuncia o enriquecimento ilícito de Ortega, desde 1990, e, sobretudo, a partir de 2007, “em uma fórmula cujo candidato à vice-presidência era um banqueiro ligado aos Contras”, aos pactos com a direita e à perseguição de antigos sandinistas. Destaca-se o “cruel assédio ao poeta e padre Ernesto Cardenal”. O documento faz um relato dos acontecimentos até chegar aos protestos de 2018. Esta carta foi uma resposta ao encarceramento de quatro pré-candidatos presidenciais e sandinistas, como Hugo Torres, Víctor Hugo Tinoco, Ana Margarita Vijil e Téllez.
O documento conclui destacando aqueles que se silenciam. “Devem se perguntar o quanto seu silêncio – sem querer – contribuiu para a soberba e impunidade com as quais o orteguismo protagoniza uma nova satrapia e quanto mal esse silêncio faz à consciência humanitária que tanto precisamos para contribuir para um mundo mais justo, livre e fraterno”.
Uma das que assinaram, Lucía Topolansky, passou doze anos presa no Uruguai, assim como seu companheiro, José Mujica, e outros dirigentes tupamaros, em péssimas condições, isolados e confinados em poços sem ver a luz. Consultada para esta reportagem, demonstrou sentir tristeza pelo “que está acontecendo na Nicarágua” e afirmou que se trata de “um regime que está longe do sandinismo”. Lembrou que a Revolução Sandinista “foi um processo muito organizado”, que entregou o governo quando perdeu as eleições (1990) e depois voltou a vencer pela via eleitoral (2007), “mas aí - lamenta - começou a ser desvirtuado e caiu em uma espécie de pântano”.
O diretor da edição colombiana do Le Monde Diplomatique, Carlos Gutiérrez, afirma que as eleições periódicas realizadas na Nicarágua são “um rito ao qual todos os governos se acomodam para indicar que supostamente não são ditaduras”, mas alerta que “o controle social está cada vez mais grosseiro, aberto, com níveis de violência que limitam todos aqueles que disputam o controle do aparato governamental, o que se conhece como oposição”.
A respeito dos silêncios de uma parte da esquerda e dos progressismos, destacou duas situações distintas. “Uma é o comportamento de certos países por conveniência geopolítica que acabam defendendo o indefensável por pragmatismo, mas com o agravante de que isso despolitiza sua própria população”. Por outro lado, existem os movimentos sociais que “consideram que todo aquele que denuncia os Estados Unidos é anti-imperialista”, o que Gutiérrez classifica como “infantil”, pois são declarações vazias e, concretamente, esses governos são “fiéis ao cumprimento das agendas traçadas pelo FMI, Banco Mundial e à aplicação do neoliberalismo com expressões claras no extrativismo”.
O editor reconhece que existe um legado histórico que tem um enorme peso nessas atitudes, como a falta de clareza sobre a história da União Soviética e do stalinismo, “do qual o poder se defende de qualquer forma, sem reparos éticos e políticos”. Recordou o romance O outono do patriarca, de seu conterrâneo Gabriel García Márquez, no qual os rebeldes “acabam como o ditador contra o qual se insurgiram”. Alerta a respeito de Ortega e Murillo: “Terminarão seus dias mortos de velhice em suas poltronas ou sofrerão o ódio de seus povos, que os destituirão. O certo é que entrarão para a história com a desonra do que são e fizeram contra a dignidade humana e a vida digna de seus povos”.
Sem pretender estabelecer um padrão de comportamento, aqueles que a partir de uma posição de esquerda condenam o regime de Ortega-Murillo, na América Latina, em primeiro lugar, referem-se aos direitos humanos e, em segundo lugar, mostram sua preocupação com o legado do regime para o progressismo e o pensamento crítico. Esses fatores colocam muitas pessoas na corda bamba no momento de assumir uma posição, como ficou claro durante a elaboração desta reportagem. De um lado, o discurso orteguista que cultiva o imaginário sandinista. Mas, sobretudo, o medo de favorecer a política dos Estados Unidos em seu quintal, já que a Casa Branca almeja, desde 2018, uma mudança de regime esperando que a direita assuma o poder.
Nesse sentido, o teólogo da libertação Leonardo Boff confessa, por meio de sua companheira, Márcia Monteiro, que o tema da Nicarágua é complexo e que não está muito por dentro. Consultados para esta reportagem, acrescentaram que “é difícil não criticar um governo autoritário, mas também não fica bem enfraquecer uma ação anti-imperialista na América Central”. Consideram que “qualquer frase descuidada pode ter um impacto que pode prejudicar o povo nicaraguense”.
No entanto, durante a repressão de 2018, Boff pediu ao Governo de Ortega que “parasse de matar” jovens e se mostrou “perplexo” com o fato de que aquele que havia libertado a Nicarágua “pudesse imitar as práticas de um ditador”, em referência a Somoza.
João Pedro Stédile, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, principal movimento social do Brasil e o maior da América Latina, expressou-se de forma parecida. “Lamento, mas faz tempo que não acompanho a conjuntura da América Central”. Esta foi sua breve explicação para descartar a possibilidade de uma entrevista formal.
Stédile havia dividido espaço com Ortega, durante a homenagem a Hugo Chávez, em Caracas, onde os movimentos sociais da ALBA mostraram interesse em incluir o regime de Ortega entre os governos progressistas. Diante dessa possibilidade, a ex-comandante sandinista Mónica Baltodano enviou uma carta a Stédile, em 4 de março: “Você não percebe que Ortega e seu governo são um desprestígio para a esquerda? É a antítese da luta contra os novos colonialismos, a defesa dos povos indígenas, dos direitos dos camponeses, dos direitos da mãe terra, das mulheres”, escreveu.
O filósofo argentino Miguel Benasayag, preso político durante a ditadura militar e depois exilado em Paris, foi consultado a respeito das dificuldades que a esquerda tem na hora de se posicionar de forma clara sobre a realidade da Nicarágua. “A esquerda tem muitos problemas para não perder o objetivo central, que é a emancipação e a justiça social, e o perde sistematicamente apontando para a estrutura, para os totens, sempre com esse medo de que se forem ditas verdades factuais, os outros vão se aproveitar delas”, explicou para essa reportagem.
“A esquerda tem medo do pensamento, de olhar para os fatos concretos”, e alertou que se trata do “lado religioso da esquerda”. Em sua opinião, esse comportamento “é um câncer para os povos, porque hoje não há nada para resgatar da Nicarágua de Ortega”.
Consultada sobre o seu posicionamento, a feminista argentina Rita Segato nos remeteu a uma conferência proferida em 24 de outubro de 2021, pois nela – disse – conseguiu fazer uma análise detalhada. A parte central de sua intervenção foi dedicada ao caso de Zoilamérica Narváez (enteada de Ortega e que o denunciou por abusos sexuais), mas esclareceu que não se trata apenas de uma pessoa, mas da estrutura de poder que está por trás: “Patriarcado, colonialidade, pedagogia da crueldade, coisificação da vida e extrativismo da natureza e dos corpos das mulheres são a equação perfeita do poder”. Dessa forma, sugere um fio entre o modelo de poder orteguista e os sofrimentos atuais da sociedade nicaraguense, e nos lembra que as feministas tiveram um papel de destaque no isolamento do regime, desde muito cedo.
Segato fez uma autocrítica porque demorou dez anos para ler a carta-denúncia de Zoilamérica, atitude pela qual agora sente “culpa e vergonha”, mas observa que é algo muito frequente quando se trata de denunciar pessoas que fazem parte do “nosso lado na política”.
Escolheu um parágrafo da carta-denúncia que contribui para a compreensão do regime e que pode ser subscrita por uma parte considerável da sociedade nicaraguense: “Fui submetida a uma prisão na própria casa onde reside a família Ortega-Murillo, a um regime de cativeiro, perseguição, espionagem e assédio com a finalidade de dilacerar meu corpo e minha integridade moral e física. Com o poder, seus aparatos de segurança e recursos disponíveis, Daniel Ortega assegurou, por duas décadas, uma vítima submetida a seus desígnios”.
Um abuso de poder que, hoje, sete milhões de pessoas estão sofrendo em uma prisão-nação chamada Nicarágua.
Esta reportagem faz parte de Nicarágua: Sueños Robados, um projeto de jornalismo colaborativo e coordenado pela aliança de meios de comunicação Otras Miradas, com a colaboração de Desinformémonos, do México; os nicaraguenses Divergentes, Despacho 505 e Expediente Público; Agencia Ocote, da Guatemala; e Público, da Espanha.
No portal UOL, 16-03-2023, Jamil Chade informa que a Nicarágua retira embaixadora do Brasil.
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A esquerda latino-americana vira as costas a Daniel Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU